domingo, 19 de fevereiro de 2023

Vestígios de uma sinagoga medieval em Espanha

 


Encontrados restos de uma sinagoga medieval em Espanha

 

'Esta é uma oportunidade para redescobrirmos a nossa história', diz autarca da cidade andaluza onde foi descoberta a sinagoga, utilizada há cerca de 530 anos.





     Num prédio abandonado no centro histórico em Andaluzia, na cidade Utrera, arqueólogos confirmaram a descoberta de restos de uma sinagoga na qual judeus espanhóis rezavam há cerca de 530 anos.

 

     Os arqueólogos anunciaram que conseguiram provar que a construção no sudoeste da Espanha, que tem origem no século 14, serviu como sinagoga na qual a comunidade judaica local rezava até a expulsão espanhola em 1492.

 

     "Os componentes importantes de uma sinagoga, como o arco da entrada e os restos dos bancos, confirmam que era um local de oração", explicou o arqueólogo Miguel Angel De Dios numa entrevista coletiva. Ele disse ainda, que sua equipa examinou as paredes e pisos do prédio abandonado durante vários anos.



Homem a trabalhar próximo ao arco de um prédio onde arqueólogos confirmaram a existência de uma sinagoga do século XIV na cidade de Utrera, a sul de Espanha.

Crédito: Santi Donaire / AP


     Esperamos ainda encontrar vestígios adicionais desta sinagoga, incluindo a plataforma da bima, a seção feminina, um mikveh (banho ritual) e talvez até uma menorá. Ao mesmo tempo, os arqueólogos procurarão edifícios judaicos adicionais que possam ter sido construídos perto da sinagoga, como era comum nas comunidades judaicas. O prefeito de Utrera, José Maria Villalobus, acrescentou: "Agora temos certezas, cientificamente falando, de que esta é uma sinagoga medieval". Ele observou que, embora o local tenha sido preservado apenas parcialmente, esse é um achado raro e excepcional; poucas sinagogas da Espanha medieval sobreviveram.

 

     As mais importantes delas foram encontradas em Toledo, Córdoba e Segóvia. A descoberta de uma sinagoga na cidade de Utrera contribui ainda mais para a preservação do patrimônio dos judeus sefarditas, expulsos de Espanha em 1492.

 

     A única evidência da existência da sinagoga foi escrita em 1604 pelo padre e historiador Rodrigo Caro, que escreveu que o hospital ali existente foi construído sobre as ruínas de uma casa de oração judaica. No século XVI, a sinagoga foi convertida em igreja, e todos os sinais externos do que antes abrigava foram apagados.



Os restos da sinagoga no prédio abandonado em Utrera, com uma grafite numa das paredes.

Crédito: CRISTINA QUICLER / AFP



Mapa da localização das ruínas da Sinagoga Medieval


     O prefeito atribuiu a preservação do prédio depois de centenas de anos ao fato da estrutura ter servido para muitos usos. Depois de se tornar um hospital e uma igreja, abrigou ainda um orfanato, um restaurante e um bar até ser abandonado. Ficou deserta durante duas décadas, até ser adquirida pela autarquia em 2018.

     "Esta é uma oportunidade para redescobrirmos a nossa história", disse Villalobus. O mesmo menciona o enorme potencial para novas pesquisas e turismo. No futuro, o edifício estará aberto ao público e os arqueólogos continuarão a trabalhar nele.



Ruínas da sinagoga medieval em Utrera.

Crédito: Cidade de Utrera


     Também na cidade Ubeda, a sul Espanha e antes das obras de construção em 2007, uma outra sinagoga foi descoberta. O trabalho de desenvolvimento no local que antes abrigava um salão de cabeleireiro e estava programado para se tornar um hotel e seu respetivo estacionamento, pôs a nu os restos de uma sinagoga medieval, incluindo um mikveh e uma seção feminina. O trabalho de construção foi interrompido e a escavação e preservação começaram. Em 2010, esta sinagoga foi aberta ao público como museu, hoje chama-se “Sinagoga del Agua (a Sinagoga da Água) ”, devido ao mikveh lá descoberto.









     Em 2003, durante a construção de um hotel, outra sinagoga foi descoberta na cidade de Lorca, no sudoeste da Espanha. Dentro de uma fortaleza medieval havia restos de uma bima e uma arca da Torá. Em 2017, restos de uma bima, pinturas murais de uma menorá e inscrições em hebraico foram encontrados em uma igreja na cidade de Hijar, em Aragão. O local foi então declarado patrimônio nacional e preservado de acordo. No ano passado, a União Europeia concedeu meio milhão de euros para a preservação da judiaria da cidade, incluindo a sinagoga.

 

     Há cinco anos, a Fundação para a Herança Judaica e o Centro de Arte Judaica da Universidade Hebraica lançaram um banco de dados de sinagogas históricas da Europa. Ele indica que das 17.000 sinagogas anteriores à Segunda Guerra Mundial, 3.318 edifícios permanecem, a maioria deles abandonados e abandonados ou servindo como igrejas, lojas, restaurantes, teatros e outros usos.




Fontes:

https://www.haaretz.com/archaeology/2023-02-09/ty-article-magazine/remains-of-medieval-pre-expulsion-synagogue-found-in-spain/00000186-31b5-dd52-ada6-fdff9e710000

https://www.tripadvisor.pt/Attraction_Review-g580278-d3236563-Reviews-Sinagoga_del_Agua-Ubeda_Province_of_Jaen_Andalucia.html


Gregos e Judeus - Parte II

 


Gregos e Judeus

Duas Culturas em Confronto Parte II: O Shabbat



Sarcófago de Alexandre (detalhe), séc. IV a.C., período helenístico da necrópole de Sídon, antiga Fenícia, Museu Arqueológico de Istambul



    Discípulo de Aristóteles, Alexandre, o Grande (Macedónia, 356- Babilónia, 323 a.C.), foi coroado rei da Macedónia aos vinte anos. Dando início à expansão territorial do seu reino, viria a conquistar uma grande parte do que era então considerado o mundo civilizado, criando um dos maiores impérios da Antiguidade. No seu apogeu, o império estendia-se da Grécia ao noroeste da Índia.

     Em 333 a.C., Alexandre derrotou Dario III, rei dos persas, na batalha de Isso. No ano seguinte, em 332 a.C., para garantir a conquista de Gaza e do Egipto, Alexandre precisava de subjugar a Fenícia, aliada dos persas. No processo, montou um cerco a Tiro, que oferecia resistência. Uma vez tomada a cidade, a vingança dos macedónios foi terrível: chacinaram 6000 habitantes, crucificaram outros 2000 e venderam 30 000 sobreviventes para a escravatura. Em 331 a.C., a derrota dos persas seria confirmada na batalha de Gaugamela, provocando a queda definitiva da Pérsia a favor dos Macedónios.



Sebastiano Conca (1680-1764), Alexandre, o Grande, no Templo de Jerusalém

Museu do Prado, Madrid



     Foi nesse ano das campanhas no Médio Oriente que, segundo o historiador judeu do século I, Flávio Josefo [Yoseph ben Mattityahu], se deu o encontro de Alexandre com o povo de Jerusalém. Quando a marcha triunfal do monarca macedónio entrou na cidade, os seus habitantes esperavam-no vestidos de branco, em sinal de paz. Shimon ben Yohanam, um membro da Grande Assembleia, que ficaria para a posteridade como Shimon HaTzadik [Simão, o Justo], terá mesmo convencido Alexandre a não colocar um ídolo no Templo. Jerusalém foi poupada.



Cabeça em mármore de Alexandre encontrada na Acrópole de Atenas, c. 338-330 a.C.,

Museu da Acrópole, Atenas



       Com a morte de Alexandre, as disputas políticas entre os seus principais generais levaram ao desmembramento do império. Em 312 a.C., Seleuco, general da cavalaria macedónia de Alexandre, tornou-se rei da Babilónia. Os Selêucidas viriam a dominar um vasto território, que se estendia da Mesopotâmia até ao rio Indo. A Judeia ficaria sujeita a Ptolomeu I, que governou o Egipto a partir de 305 a.C.

     Tanto os Ptolomeus como os Selêucidas competiam pela fidelidade da população da Judeia. Estrategicamente situada entre os dois reinos, a Judeia passou para o domínio dos Selêucidas no início do século II a.C. Entretanto a difusão da cultura grega fez o seu caminho. Resultaria na cultura helenística, uma fusão entre a cultura grega ou helénica e as tradições das terras que Alexandre conquistou.

      É neste complexo mundo de Alexandre, no reinado de Ptolomeu II do Egipto (r.285-246 a.C.), concretamente em Alexandria, uma das grandes cidades da história judaica, que se dá um dos maiores acontecimentos interculturais de todos os tempos: a tradução da Torah para o grego. Destinada ao acervo da Biblioteca de Alexandria, a tradução ficou conhecida por Septuaginta, Hashiv’im em hebraico, porque foi traduzida por uma equipa de setenta e dois eruditos judeus (seis vezes as doze tribos de Israel).


A Septuaginta e o Shabbat



Jean Baptiste de Champaigne, Ptolomeu II conversando com alguns dos 72 sábios judeus sobre a Bíblia na Biblioteca de Alexandria, 1672, Palácio de Versalhes



      Informa-nos o rabi Jonathan Sacks, que no Talmude são várias as referências aos eruditos envolvidos no projecto de tradução da Torah, por terem deliberadamente traduzido mal certos textos, convictos de que uma tradução literal seria incompreensível para o leitor grego. Um desses textos era a frase «E terminou Deus, no dia sétimo, a obra que fez» (Génesis 2:2-3). Em vez disso os tradutores escreveram «No sexto dia Deus terminou».

     O que é que eles pensaram que os gregos não compreendiam? Por que motivo faria mais sentido Deus ter criado o universo em seis dias, em vez de sete? Parece confuso, mas a resposta é simples. Os gregos não conseguiam compreender o sétimo dia, Shabbat, como parte da Criação. Mas, afinal, o que é que o descanso tem de criativo? O que é que alcançamos por não fazer, não trabalhar, não inventar?

     Com efeito, o mundo grego (e greco-romano) estranhava um conjunto de coisas no Judaísmo, para as quais não via sentido; além do monoteísmo (uma verdadeira aberração), a recusa em comer porco, a circuncisão e o Shabbat. Diziam eles que os judeus não trabalhavam um dia em cada sete, porque eram mandriões. A ideia de que o dia em si pudesse ter valor próprio, era alheia à sua compreensão.




Haggadah de Sarajevo (2º painel-Bereshit), Barcelona, c. 1350, Museu Nacional da Bósnia-Herzegovina


   A Haggadah de Sarajevo abre o ciclo bíblico com a descrição dos sete dias da Criação. No segundo painel podemos observar (lendo da direita para a esquerda), a criação do sol, da lua e das estrelas; dos peixes e dos pássaros; dos animais terrestres e do homem [Adam] (Gen. 1:3-31); a última iluminura representa um homem descansando em Shabbat – “E terminou Deus no dia sétimo a obra que fez, e cessou no dia sétimo toda a obra que fez. E abençoou Deus o dia sétimo e santificou-o, porque nele cessou toda a Sua obra, que Deus criara para fazer.” (Gen. 2:2-3).

     Na Torah, a ideia de um dia sagrado, ao contrário de qualquer noção referente a um lugar sagrado, remonta ao início da existência do mundo. Dom Isaac Abravanel (Lisboa, 1437-Veneza, 1508/09) num comentário ao IV Mandamento — Lembra o Shabbat —, interpreta o descanso de Deus no Shabbat não como uma pausa no Seu envolvimento neste mundo, mas como uma mudança no modo do Seu envolvimento criativo. Enquanto nos primeiros seis dias foi necessário criar "algo do nada", a partir de Shabbat a energia criativa de Deus terá assumido uma nova forma. Em vez de se concentrar na criação de entidades que anteriormente não existiam, a Sua energia foi canalizada para os seres recém-criados, prenunciando o universo espiritual de Shabbat.


O fogo

O oitavo dia– o dia depois da Criação



“E a terra era vã e vazia” (Gen. 1:2)

Francisco de Holanda (Lisboa, 1517- Lisboa, 1585), De Aetatibus Mundi Imagines, Biblioteca Nacional de España, Madrid, Espanha



    No princípio Deus criou os céus e a terra e a terra era “vã e vazia”. Mas dia após dia, a terra começou a tomar forma. Primeiro foram os domínios: luz e escuridão, a separação das águas e o surgimento de terra seca com vegetação. Depois os domínios foram preenchidos com o sol, a lua e as estrelas, os peixes e os pássaros, os animais terrestres e o homem. Finalmente veio o Shabbat, o sétimo dia.

     Eis os sete dias. Mas então e o oitavo dia, o dia depois da Criação? Para compreendermos o oitavo dia, temos de recorrer à tradição oral, Torah she-be’al peh.

     No sexto dia Deus tomou a Sua decisão mais significativa: criar um ser que tal como Ele, tivesse a capacidade de criar. Esta a razão por que somos feitos “à imagem de Deus”. Há que reconhecer, no entanto, a diferença fundamental entre criatividade humana (“algo de algo”) e criatividade Divina (“algo do nada”).

     Todavia, a capacidade para criar anda de mãos dadas com a capacidade para destruir. Uma não existe sem a outra. Qualquer poder, qualquer tecnologia amplia a capacidade humana, tanto para o bem como para o mal.

     O perigo tornou-se imediatamente claro. Deus disse ao primeiro homem para não comer os frutos de uma determinada árvore. Uma árvore, cuja função simbólica era representar o princípio de que a criação tem limites, percepcionando a posição do conhecimento na nossa conduta moral. Quando os dois primeiros seres humanos comeram o fruto proibido, a harmonia essencial entre homem e natureza foi quebrada. A Humanidade perdeu a sua inocência. Pela primeira vez a natureza (o mundo que encontramos) e a cultura (o mundo que criamos) entraram em conflito. E o resultado foi perdermos o paraíso.




A cerimónia de Havdalah.  Haggadah de Barcelona, Catalunha, c. 1340. British Library, Londres.

(Um homem empunha um cálice para dizer a bênção de encerramento do Shabbat, enquanto um menino segura uma vela entrançada de Havdalah.)



    De acordo com os sábios, este drama teve lugar no sexto dia. Naquele dia, os primeiros humanos foram criados, receberam ordens para não comer da árvore, transgrediram as ordens e foram condenados ao exílio.

     Mas, diz-nos o Midrash, Deus na Sua compaixão permitiu-lhes ficar além da sentença. Foi-lhes dado um dia extra no Éden — o Shabbat. Durante todo aquele dia o sol mostrou-se radiante. Aproximando-se do fim, a luz celestial começava a desvanecer-se. Adão e Eva tinham medo de ser atacados pela serpente na escuridão. Então Deus mostrou aos primeiros humanos como fazer luz. Deus iluminou-lhes o entendimento e eles aprenderam a fazer fogo, esfregando duas pedras, uma contra a outra, e a produzir luz. 

     Esta é a razão, dizem os sábios, pela qual nós acendemos uma vela de Havdalah no fim do Shabbat, para inaugurar a nova semana. Convém, no entanto, relembrar a diferença primordial entre a luz do primeiro dia (“E Deus disse: Haja luz…”) e a do oitavo dia. A luz do primeiro dia foi criada por Deus, a luz do oitavo dia foi aquilo que Deus nos ensinou a criar. Simboliza “a nossa parceria com Deus no trabalho da Criação”.

     Não há, certamente, imagem mais comovente do que esta quando Deus estimula as nossas capacidades para nos juntarmos a Ele, trazendo luz para o mundo.


O mito de Prometeu



Jean-Louis-Cesar Lair, A tortura de Prometeu, 1819, Le Puy-en-Velay, Musée Crozatier, França



     Para compreendermos o significado completo desta história, temos de recorrer a um dos grandes mitos do mundo antigo: o mito de Prometeu. Na mitologia grega, os deuses hostilizavam os humanos. Zeus queria guardar segredo da arte de fazer fogo, mas Prometeu (um titã defensor da humanidade) roubou uma faísca e ensinou ao homem como se fazia. Assim que o roubo foi descoberto, Zeus condenou-o a um tormento eterno: acorrentou-o a uma rocha e num ciclo interminável, uma águia picava-lhe o fígado, que se regenerava durante a noite, para voltar a ser picado no dia seguinte.

     Na narrativa rabínica, a maneira como Deus ensinou Adão e Eva a fazer fogo, é exactamente o oposto da história de Prometeu. Num acto de amor, Deus procura conferir dignidade ao ser que criou à Sua imagem. Não escondendo os segredos do universo de nós, Deus não pretende manter-nos num estado de ignorância e dependência. Nós acreditamos que Deus quer que o ser humano conduza a sua vida em liberdade, responsável e criativamente, dentro dos limites que respeitem a integridade da natureza, zelando pelo mundo que criou para nós. Este é o significado do oitavo dia. É a contrapartida humana do primeiro dia de Criação.

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O farol de Alexandria. Gravura de Maarten van Heemskerck. Impressão de Phillips Galle, 1572



     Quando pensamos em gregos e judeus, facilmente fazemos a associação a Chanukah, que remete para o período trágico do reinado do grego-selêucida Antíoco IV Epifânio (c.215-164 a.C.), que na sua loucura de acabar com o Judaísmo, atirava rapazinhos circuncidados do alto das muralhas de Jerusalém, juntamente com as suas mães. Portanto, imaginar um judeu helenizado parece uma contradição. Mas não é. No seu livro “História dos Judeus – 1000 a.C. a 1492 d.C.”, Simon Shama diz-nos que durante os duzentos anos que mediaram entre as conquistas de Alexandre e o domínio romano, as culturas grega e judaica conseguiram encontrar pontos de convergência.

      Os judeus, tanto na sua terra natal, como na diáspora, especialmente na grande metrópole de Alexandria, estavam familiarizados com a poesia e a filosofia da Grécia antiga, reconhecendo-lhes o apelo universal. A comunidade judaica alexandrina desenvolveu mesmo as suas próprias tradições, por vezes diferentes da norma rabínica. Entre os escritores judeus havia poetas, dramaturgos, historiadores e filósofos. O filósofo Fílon de Alexandria (c.20 a.C.-c.50 d.C.) foi de todos o maior.

     No entanto, a relação do helenismo com o judaísmo, não sendo completamente discordante, não resultou num sincretismo. Em vez disso, os judeus reexaminaram as suas próprias tradições à luz das várias culturas gregas que encontraram ao longo do Mediterrâneo, conseguindo reter a sua particularidade cultural. Ou seja, o helenismo pagão não destronou a assunção monoteísta do discurso rabínico. 


 Hallelu Avdei Adonai

Aleluia, Servos do Eterno



Hallelu Avdei Adonai, Ensemble da Orquestra Hibba



    Hallelu Avdei Adonai pertence à tradição litúrgica dos judeus do Iraque, uma comunidade milenar, cuja origem remonta ao período da História Judaica, quando os judeus do antigo Reino de Judah foram cativos na Babilónia, convencionalmente entre 586-538 a.C. Os judeus da Babilónia (antiga Suméria) dominaram cultural e religiosamente o mundo judaico até ao século XI, altura em que a comunidade começou a entrar em declínio, eclipsada pelos judeus da Península Ibérica.



Artigo elaborado por :

Sónia Craveiro


Muito obrigada



Fontes:

https://en.wikipedia.org/wiki/Alexander_the_Great

Alexander's Siege of Tyre, 332 BCE

https://www.worldhistory.org/article/107/alexanders-siege-of-tyre-332-bce/

Who Were the Hasmoneans?  BY DAN SHAPIRA

https://www.tabletmag.com/sections/history/articles/who-were-the-hasmoneans

http://www.rabbisacks.org/renewable-energy-beshallach-5776/ Septuagint/Shabbat

.http://rabbisacks.org/light-make-shemini-5777/ 8º dia-Havdalah

https://biblehub.com/sep/genesis/2.htm «And God finished on the sixth day his works which he made, and he ceased on the seventh day from all his works which he made. » Brenton's Septuagint Translation

Hellenism. https://www.jewishvirtuallibrary.org/alexandria

A Lei de Moisés – Torá, Génesis, editora & livraria Sêfer; São Paulo, Brasil

SCHAMA, Simon, A História dos Judeus – 1000 AC – 1492 DC (Judeus Clássicos?), Círculo de Leitores, Lisboa, Portugal

GREEN, Arthur, “Estas são as Palavras: Um Vocabulário da Vida Espiritual Judaica-Shabath”, Editores Solomon, Rio de Janeiro, Brasil

Comentário à parashat “Yitro” (o IV Mandamento – “Lembra o Shabbat”), por Rabi Eli Rosenfeld

sábado, 11 de fevereiro de 2023

Gregos e Judeus I

 

Duas Culturas em Confronto Parte I: 

Sacrifícios Humanos

 

A Guerra de Tróia


Cálice-cratera ático de figuras vermelhas, assinado por Eufrónio (pintor) e Euxíteos (ceramista), c.515 a.C., Museu Arqueológico de Cerveteri, Itália

(A cena ilustra o episódio da Guerra de Tróia em que Zeus ordena a Hipno e a Tânato (o Sono e a Morte) que recolham o cadáver de Sarpédon (Ilíada XVI). Hermes, no centro da cena, usa um pétasos, o chapéu dos viajantes, e tem nas mãos o kerykeion, símbolo dos arautos e mensageiros gregos.)



     A Guerra de Tróia, ocorrida entre gregos e troianos numa fase tardia da Idade do Bronze, inspirou grandes escritores da Antiguidade Clássica, como Homero, Heródoto, Sófocles ou Virgílio. A literatura é uma das fontes mais ricas em informação sobre a cultura dos antigos gregos: da sua religião, heróis-guerreiros, costumes… Escavações arqueológicas realizadas na região da Anatólia (actual Turquia), na década de 1870, pelo arqueólogo alemão Heinrich Schliemann, revelaram as ruínas do que foi Tróia, que terá sido destruída cerca de 1180 a.C.. A representação do conflito na literatura, como na “Ilíada” de Homero, escrita 300 a 400 anos depois, tem, no entanto, mais de mito do que realidade. Contudo, ela definiu a maneira como a cultura da antiga Grécia é vista até aos nossos dias.

     De acordo com fontes clássicas, a guerra teve origem no rapto de Helena, mulher de Menelau, rei de Esparta, por Páris, príncipe de Tróia. Menelau convenceu o seu irmão Agamémnon, rei de Micenas, a organizar uma expedição para a trazer de volta. Reunidos em Áulide, os guerreiros gregos, com uma frota de mais de mil navios de todo o mundo helénico, estavam preparados para atravessar o mar Egeu e atacar Tróia. Entretanto, Agamémnon tinha caçado uma corsa sagrada da deusa Artemisa. Esta, como retaliação, amainou os ventos, impedindo os barcos de navegar. Para serenar Artemisa, Agamémnon sacrifica a própria filha, Ifigénia.

O vento volta a soprar e os barcos zarpam. Agamémnon destrói Tróia e no regresso é assassinado pela mulher, Clitemnestra, inconformada com a perda da filha. Clitemnestra, por sua vez, é assassinada pelo filho, Orestes, que quer vingar a morte do pai.


Agamémnon e Ifigénia



O Sacrifício de Ifigénia, fresco de Pompeia, século I d.C., Museu Arqueológico Nacional de Nápoles 

(Ifigénia é arrastada para o altar sacrificial à deusa Artemisa. De cada um dos lados está o pai, o rei Agamémnon, e a mãe sofredora, a rainha Clitemnestra)


     Nesta tragédia grega, o nosso interesse particular prende-se com o sacrifício de Ifigénia. Em “Cidade Antiga” (1864), o notável historiador francês Fustel de Coulanges expõe a origem das instituições das sociedades grega e romana. Coulanges faz a comparação sistemática das crenças e leis, demonstrando que a família grega e romana foi constituída com base numa religião primitiva. Explica ele que antes do aparecimento das cidades e civilizações, a unidade social e religiosa residia na família, havendo uma relação intrínseca entre três coisas: a religião doméstica, a família e o direito de propriedade. Cada família tinha as suas divindades, entre elas os espíritos dos seus falecidos antepassados, a quem pediam protecção e a quem ofereciam sacrifícios. A autoridade do chefe de família, o pater familias, era soberana. Ele tinha poder absoluto sobre a vida e morte da mulher e dos filhos, por estes terem estatuto de propriedade e não de pessoas por direito próprio. Por morte do pai, a autoridade passava invariavelmente para o filho mais velho. Esta ideia persistiu além da era bíblica no princípio da lei romana patria potestas. No reinado de Adriano (r.117-138 d.C.), o poder do pai sobre os filhos já tinha sido seriamente diluído: um pai que matasse o filho sujeitava-se a perder a cidadania romana, ver os seus bens confiscados e, finalmente, ser condenado ao exílio.


Abraão: de Ur para Canaã



Padrão de Ur, Paz (detalhe), 2600-2400 a.C., British Museum, Londres


     Diz-nos a Bíblia que Abraão, de seu nome original Av ram [Abrão], nasceu em *Ur dos Caldeus, na Suméria, num mundo pagão onde os sacrifícios humanos não eram estranhos. Na Bíblia Hebraica, Abraão é o primeiro patriarca, o primeiro monoteísta, fundador das três fés monoteístas: Judaísmo, Cristianismo e Islão. Obedecendo ao comando de Deus, Abraão [Abrão], juntamente com a mulher Sara [Sarai], o sobrinho Lot e os seus servos, por volta de 1850 a.C. deixa a sua terra natal e dirige-se para Canaã, uma terra desconhecida. Deus prometera-lhe que ele seria o pai de uma grande nação e que os seus descendentes, Isaac, Jacob (depois chamado Israel) e mais tarde todos os filhos de Israel, herdariam a Terra Prometida.

Quem era Abraão, e por que razão foi escolhido? Este é um mistério que a narrativa bíblica não explica. Mas sabemos que aceitou corajosamente uma vida de incertezas, guiado por uma fé inabalável em Deus. E sabemos que foi escolhido para ser um pai. De realçar que o nome original de Abraão, Av ram, significa “nobre pai”, e o seu nome alargado, Avraham, significa “pai de muitas nações”. Mas Abraão foi o pai a quem Deus ordenou que sacrificasse o seu filho:

«Então Deus disse: Toma o teu filho, teu único filho Isaac, a quem amas, e vai à terra de Moriah, e oferece-o ali como oferta de elevação, sobre um monte que Eu te vou indicar.»

(Génesis 22:1-2) Que sentido tem isto? Se já é difícil compreender semelhante ordem em si, quanto mais ditada a Abraão que deveria tornar-se um símbolo de pai-modelo.



Caravaggio, O Sacrifício de Isaac, 1603, Galerias Uffizi, Florença


     A interpretação convencional deste episódio dramático em que Abraão quase sacrifica o filho, conhecido entre os judeus por Akedah, é a de que Deus estava a testar o patriarca, pondo à prova o seu amor por Ele. Mas entre outras, há uma considerada basilar na tradição judaica: a de que esta história é um protesto contra o sacrifício humano, sendo o ponto nevrálgico o momento em que o anjo intervém para impedir o assassínio, que Deus, ao contrário dos deuses pagãos, condena enquanto um acto abominável. Depois da Akedah, a Aliança que Deus fez com Abraão foi selada, não com a morte de Isaac, mas com o sacrifício de um cordeiro oferecido no lugar do rapaz.

     Argumenta o rabi Jonathan Sacks que Deus, além de não pretender o sacrifício de Isaac, queria que Abraão renunciasse à posse do seu filho. Contrariamente à ideia universalmente aceite nas culturas pagãs de que os filhos são propriedade dos pais, o episódio do sacrifício de Isaac é uma rejeição desse princípio. Deus queria consagrar na Lei Judaica o princípio irrevogável de que os filhos não são propriedade dos pais, vinculando a ideia de que aos pais cabe o papel de serem guardiães dos seus filhos.

A ênfase na parentalidade é vital na espiritualidade judaica: maternidade no caso de Eva, paternidade no de Abraão. Mas enquanto a maternidade é um fenómeno biológico, a paternidade é um fenómeno cultural, que precisa de ser reforçado com códigos de conduta moral. O conceito de uma relação sagrada entre pai e filho tal como hoje a entendemos, não fazia parte da mentalidade do mundo antigo. Aquilo que o monoteísmo abraâmico trouxe ao mundo não foi só a redução de muitos deuses para um. O Deus de Israel é o Deus que, com amor infinito, nos ampara e zela por nós como um pai zela pelos seus filhos. Na Bíblia Hebraica [Tanach], às vezes Deus é descrito como um pai: «Não temos todos nós um mesmo pai? Não nos criou a todos um mesmo Deus?» (Malaquias 2:10). Outras vezes é descrito como uma mãe: «Como quem recebe de sua mãe conforto, Eu vos consolarei» (Isaías 66:13). O primeiro atributo de Deus é compaixão, da palavra hebraica rachamin, que vem de rechem, significando “ventre”.


Sacrifícios humanos na Bíblia Hebraica



Rombout van Troyen, Acaz sacrifica o seu filho a Moloch, 1626, SØR Collectio


     O Tanach conta como o rei Meshah, de Moab, sacrifica o príncipe herdeiro para evitar um desastre militar (II Reis 3:27). A Bíblia Hebraica revela-nos um mundo intrincado e não raras vezes violento, onde também houve reis de Israel e de Judah que se deixaram seduzir pela idolatria. Acab, rei de Israel (r.874-853 a.C.), que tomou como esposa a poderosa fenícia Jezabel, ergueu um templo a Baal, em Samaria, praticando sacrifícios humanos (I Reis 16:29-33).

O rei Acaz de Judah sacrificou o filho ao deus Moloch (II Reis 16:3). Manassés, neto de Acaz, um politeísta entusiasta que levou uma vida aventureira entre o Egipto e a Assíria, ergueu altares ao deus fenício Baal, recorrendo a sacrifícios de crianças, entre as quais o próprio filho (II Crónicas 33:6). O culto a Moloch, o terrível deus devorador de crianças, era praticado num local específico, fora das muralhas de Jerusalém no *vale de Ben Hinnom. Estava firmemente instituído nos reinados de Manassés e do seu filho Amon, assim chamado em honra ao culto egípcio do Sol. Foi completamente erradicado por Josias, que sucedeu ao pérfido Amon. Na sequência de um dos pontos mais indignos da história judaíta, Josias (r.640-609 a.C.), no âmbito das suas actividades reformistas, regressou ao culto do Deus único e restaurou o Templo, que se encontrava num estado de ruína degradante (II Reis 


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No mundo antigo a disposição para oferecer os filhos em sacrifício era lugar-comum. Aliás, baseada na crença de que os seres humanos foram criados para ser servos dos deuses, e que para os aplacar era preciso oferecer-lhes sacrifícios. Os Judeus foram o primeiro povo a quebrar este círculo. Um dos aspectos fundamentais da Torah (os cinco primeiros livros da Bíblia Hebraica) é não contemplar sacrifícios humanos, o que torna o Judaísmo bíblico altamente distintivo.

     Reflectindo na análise de Fustel de Coulanges, conclui-se que enquanto os pais acreditassem ser donos dos seus filhos, ainda não havia a ideia de indivíduo. Nesta perspectiva, diz-nos o saudoso rabi Jonathan Sacks, podemos interpretar a Akedah, o sacrifício de Isaac, como uma mensagem sobre a independência das crianças como indivíduos, uma proclamação de que paternidade não deve ser posse, mas sim tutela. A Torah representa o nascimento do indivíduo como figura central na vida moral, a integridade de cada um de nós como agente moral por direito próprio. Esta foi uma das maiores revoluções morais na História da humanidade.


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     Terminamos este artigo com dois temas musicais. O primeiro — “Ya’ala, Ya’ala” —, normalmente cantado nas comunidades Mizrahi, na celebração do nascimento e Bat Mitzvah de uma filha. “Ya’ala, Ya’ala” é um poema litúrgico [Piyut] da autoria do rabi Israel Najara (Safed, c.1555-Gaza, c.1625, Palestina, Império Otomano), que exalta o amor entre o dod (o amante) e a ra’aya (a mulher). A ra’aya aqui é referida por Ya’ala. Das várias melodias compostas para este poema, a mais famosa é de Ezra Aharon (Bagdade, 1903-Israel, 1995).





“Ya’ala, Ya’ala” Hibbat hapiyut

 

O segundo tema — “Father and Daughter” — de Paul Simon, é uma balada que o autor dedica à sua amada filha, Lulu. 

There could never be a father 

Who loved his daughter more than I love you



 
Paul Simon and Friends (1/6) "Father and Daughter" (2007) HD 

I'm gonna watch you shine 

Gonna watch you grow 

Gonna paint a sign

So you'll always know 

As long as one and one is two 

There could never be a father 

Who loved his daughter more than I love you

 

*Abraão pertencia a uma família de Semitas caldeus há muito estabelecidos em Ur, que séculos mais tarde dariam o nome à minoria cristã caldeia do Iraque. 

*O vale de Ben Hinnom, identificado como local de culto de sacrifícios de crianças pelo fogo, é conhecido entre os cristãos por Geena (uma concepção de Inferno).

 


Artigo de

Sónia Craveiro


Muito obrigada


Fontes:

Bíblia Hebraica, Editora e Livraria Sêfer Ltda, São Paulo, Brasil, 2006

 

SCHAMA, Simon, A História dos Judeus – 1000 AC – 1492 DC (As Palavras), Círculo de Leitores, Lisboa, Portugal https://www.ancient.eu/Trojan_War/ https://www.thecollector.com/trojan-war-heroes/ https://www.ancient.eu/image/3853/the-sacrifice-of-iphigenia/ https://latim.paginas.ufsc.br/files/2012/06/A-Cidade-Antiga-Fustel-de-Coulanges.pdf https://www.rradar.com/post/roman-law-patria-potestas http://www.rabbisacks.org/to-bless-the-space-between-us-vayera-5776/ https://rabbisacks.org/vayera-5771-the-binding-of-isaac-a-new-interpretation