terça-feira, 28 de novembro de 2017

“OLHO POR OLHO, DENTE POR DENTE”




“Olho por olho, dente por dente” significará, realmente, 
um olho por um olho?





     “Olho por olho, dente por dente”: esta passagem do Livro do Êxodo (Êx. 21:24) é uma das mais conhecidas da Torah, e também uma das que mais tem prejudicado a reputação do Judaísmo ao longo dos tempos.
     Em sociedades pré-bíblicas não é difícil imaginar uma vítima de agressão tirar a vida ao seu agressor, como forma de retaliação, criando assim um ciclo infindável de conflitos e vinganças, que se prolongaria de geração em geração. Ao definir a ideia de que uma lesão provocada deve ser objecto de reparação material, a Torah não aprova a vingança, estabelecendo como reparação uma medida standard imediatamente perceptível como justa. 



Jean Fouquet, Pompeu no Templo de Jerusalém, c. 1470, BNF, Paris


       É do conhecimento geral que a Judeia do Período Romano estava muito fragilizada. A influência greco-romana era omnipresente e insidiosa, com manifestações inegáveis de paganismo, e aos problemas interétnicos entre as populações judaicas e não-judaicas, juntavam-se as tensões sociais, religiosas e políticas no seio da própria sociedade judaica. Pode assim deduzir-se que numa população tão heterogénea e conturbada, a Torah não fosse conhecida de todos, ou que muitos dela tivessem um conhecimento pobre e limitado, se não mesmo deturpado.

     Como mais adiante tentaremos demonstrar, a frase “olho por olho, dente por dente” faz parte de uma sentença destinada a implementar normas de justiça e equidade. Contudo, por muito revolucionária que a directiva “olho, por olho” tenha sido quando a Torah foi escrita, durante o Período Romano terá degenerado numa espécie de receita para um legalismo mesquinho e rudimentar — uma troca por troca.




James Tissot, “O Sermão da Montanha”, Ilustração para “A Vida de Cristo”, c. 1886-96, Brooklyn Museum of Art, Nova Iorque


«Não penseis que Eu vim abolir a Lei e os Profetas. 
Não vim abolir, mas dar-lhes pleno cumprimento.» 
(Sermão da Montanha – Mateus 5:17).


     No Sermão da Montanha, Jesus fez questão de realçar o tema, quando repudiou a frase “olho por olho, dente, por dente”, em concreto: «Ouvistes o que foi dito: “Olho por olho, dente por dente!” Eu, porém, digo-vos: não vos vingueis de quem vos fez mal. Pelo contrário: se alguém te bater na face direita, oferece-lhe também a esquerda!» (Mateus 5:38-39). Este texto, para ser entendido, não pode ser extirpado do contexto maior. Ou seja, o propósito de Jesus no Sermão da Montanha não era o de abolir a Lei de Deus, revelada por meio de Moisés, mas antes de a confirmar, refutando as distorções que lhe eram feitas.



John Hamilton Mortimer, Shylock, 1776, Metropolitan Museum of Art, Nova Iorque



     Para a posteridade, “olho por olho, dente por dente”, também chamada “Lei de Talião”, viria a representar para a Cristandade o que de pior havia no Judaísmo, uma religião de lei, em vez de uma religião de amor; o Judaísmo oferece uma vingança rancorosa, enquanto o Cristianismo oferece uma generosidade sublime – uma equação que foi, e ainda continua a ser, profundamente influente na cultura ocidental.

     Na peça O Mercador de Veneza, de Shakespeare, a insistência de Shylock, o usurário judeu, em tirar uma libra de carne do corpo de António, o mercador cristão, conforme o espírito da lei, é uma metáfora eloquente desta ideia. A disputa entre Shylock e António levanta a questão sobre o direito do credor à sua propriedade, e o direito à vida. Objectivamente, o mote central da peça é sobre a Lei e a Justiça, onde subjaz o conflito entre a Cristianismo, representado por António, e o Judaísmo, representado por Shylock. 


O PROBLEMA

    Interpretar o conceito bíblico “olho por olho, dente por dente” como uma forma de reciprocidade rigorosa entre o crime e a pena, é consensual, como sabemos. Mas se lermos atentamente o texto da Torah, percebemos que o seu objectivo não é a vingança, mas sim fazer justiça: “Olho por olho, dente por dente, (…). E quando ferir um homem o olho de seu escravo ou o olho de sua escrava, e o danificar, o deixará em liberdade por causa de seu olho.” (Êx. 21: 24-26).
     O texto bíblico é claro quando faz a correspondência entre o mal causado a alguém e o castigo imposto a quem o causou. Neste caso, o agressor perde o direito à sua propriedade, enquanto a vítima ganha a liberdade. Nenhum momento do texto aponta para vingança. Pelo contrário: a vítima, apesar da sua condição de escravo, tem o direito inalienável a não ser lesada na sua integridade física. Porque o foi, é indemnizada com o direito à liberdade. Isto não é vingança, é justiça!
     Desta forma, “olho por olho, dente por dente”, não tem o sentido que lhe é atribuído; na verdade é uma lei que impõe critérios de justiça e equidade, na qual aquele que transgride é obrigado a compensar a parte lesada.
     Partindo da lei bíblica, os rabis produziram uma série de textos legais, constantes nos tratados Ketuvot 32b e Bava Kama 83b, que integram o Talmude. Embora não se saiba exactamente quando foi instituída a prática do pagamento de multas para ressarcir danos físicos causados a outrem, sabe-se que quando a Mishnah foi compilada, no século I da EC, já era uma prática consagrada.

LER, COMPARAR E CONTEXTUALIZAR



Haggadah Ashkenazi, Cinco Rabis em Bnei Brak, c. 1560-1575. 
British Library, Londres

AYIN TACHAT AYIN, SHEIN TACHAT SHEIN
“OLHO POR OLHO, DENTE POR DENTE”

      No texto bíblico, “Olho por olho, dente por dente” apresenta-se em hebraico na forma “Ayin tachat ayin, shein tachat shein”. Alguns especialistas defendem que a palavra “tachat”, que é traduzida “por” não tem este significado, significando antes “no lugar de”. Para o efeito dão alguns exemplos: no episódio do sacrifício de Isaac, Abraão sacrifica um carneiro tachat o seu filho Isaac (Génesis 22:13); na história de José na corte do Faraó, Judah diz a José: «deixa-me ser teu servo tachat Benjamim» (Génesis 44:33). Ou o episódio da prostituta Rahav em Jericó, quando os espiões israelitas dizem a Rahav que se esta não os denunciar, a troco da sua discrição eles empenham as suas vidas tachat dela (“A nossa vida responderá pela vossa, se não denunciardes esta nossa conversa.” (Josué – 2:14).
     Daqui podemos concluir que alguém que cega outra pessoa, tem de dar a essa pessoa algo tachat o olho perdido, alguma coisa no lugar do olho perdido. Essa alguma coisa, diz-nos a tradição, será uma compensação monetária.

Há um Deus, mas há muitas fés.
Isto diz-nos que Deus é maior que a religião.

     Um dos momentos mais trágicos da civilização ocidental, foi quando os cristãos começaram a distinguir entre aquilo a que chamaram o “Deus de vingança do Velho Testamento”, por oposição ao “Deus de amor do Novo Testamento”. É uma daquelas assunções que está de tal forma enraizada na cultura, que nem é posta em causa. Causa arrepios, só de pensar quantos judeus perderam a vida à luz deste preconceito.
     “Olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé” é apenas um versículo dos 118 que compõem o Código Legislativo, compreendido entre os capítulos 21 e 24 (Parashat Mishpatim), do Livro do Êxodo. Interpretar a frase “olho, por olho, dente por dente” na perspectiva da vingança, não é um erro menor. Afinal, ler um verso, tirá-lo do contexto, e formular conclusões a partir daí, pode ter consequências devastadoras. E tem prejudicado gravemente a reputação do Judaísmo.



Este artigo foi uma oferta da,
Sónia Craveiro


Muito obrigada J

Fontes:

Torá, a Lei de Moisés, Editora e Livraria Sêfer Ltda, 2001, São Paulo, Brasil;
Bíblia Sagrada, Evangelho segundo Mateus, Paulus Editora, 2012, Lisboa;


quinta-feira, 19 de outubro de 2017

Desenhar...



…Para NUNCA mais esquecer!







FONTE:
https://www.youtube.com/watch?v=olM0U5ZpmLI

Jaguar Paw, Documentários, Documentaries

segunda-feira, 31 de julho de 2017

Henry Weiss's paintings


Shavua Tov!







Fonte das imagens:
http://chomikuj.pl/OMAMAR51/*c5*9aWIAT+OBRAZU/ART/Jewish+painters/Weiss,3

quarta-feira, 7 de junho de 2017

Momento Musical Dedicado a Miriam!




Uma canção para Miriam, a Profetisa

Miriam HaNeviah



Miriam e as mulheres israelitas celebram o Êxodo do Egipto, Golden Haggadah, fol.15r (detalhe), Catalunha, c. 1300, The British Library



      A iluminura da Golden Haggadah apresenta um grupo de mulheres tocando instrumentos musicais típicos da Idade Média na Península Ibérica. À frente podemos observar Miriam tocando adufe e uma outra mulher percutindo um pandeiro; atrás de Miriam, uma mulher toca castanhetas e outra, pratos de choque; no meio (com o rosto encoberto pelo adufe) encontra-se uma mulher tangendo alaúde e, atrás, do lado direito duas outras dançam.


     A pintura é inspirada numa passagem do Livro do Êxodo (Êx.15:20), que descreve Miriam liderando as mulheres israelitas tocando tambores e dançando, após a milagrosa travessia do Mar Vermelho - «E tomou Miriam, a profetisa, irmã de Aarão, o tambor na sua mão, e saíram todas as mulheres atrás dela, com adufes e com danças.». Inspirado nesta mesma passagem, o percussionista israelita Zohar Fresco compôs o tema “Miriam, a Profetisa – Miriam HaNeviah”.


     Neste apontamento musical, a interpretação do tema “Miriam HaNeviah” de Zohar Fresco está a cargo do grupo feminino Peimat Miriam. As intérpretes tocam tamborins criados no atelier do artesão de “Judaica” Yair Emanuel, um artista formado na Academia Bezalel de Artes e Design de Jerusalém. 






Zohar Fresco - Peimat Miriam - Miriam Ha Nevia

Video - Directing, Editing & Photography by Shani Halevy

recorded & mixed by Ran Shem Tov - Vivi's studio
thank you to "goat with the wind" farm


Este artigo foi uma oferta da,

Sónia Craveiro


Muito obrigada J




domingo, 9 de abril de 2017

FROM PORTUGAL...





Chag Sameach Pessach!



The Search for Leaven | Amsterdam
(illustration circa 1733–1739 by Bernard Picart)



The Passover Seder of the Portuguese Jews | Amsterdam 
(illustration circa 1733–1739 by Bernard Picart)



Fonte:


segunda-feira, 3 de abril de 2017

JERUSALÉM | IV Parte



JERUSALÉM

Cidade das Três Religiões Abraâmicas



1948. Av. Princesa Mary, agora Rua Shlom Tziyon HaMalka, Jerusalém. (A Administração Britânica usava arame farpado para bloquear certas zonas da cidade —  zonas de segurança—, que ficaram conhecidas por Bevingrad, em referência ao Ministro Britânico dos Negócios Estrangeiros, Ernest Bevin)



      Os confrontos ocorridos na Palestina durante o Mandato Britânico, que muitas vezes atingiam os britânicos ou exigiam intervenção britânica, tiveram efeitos no apoio do Reino Unido ao território. Já em 1929, alguma imprensa do Reino Unido fazia eco de uma opinião pública favorável à saída britânica da Palestina. A contestação à permanência na Palestina subiria de tom no período da II Guerra Mundial, quando o esforço de guerra exigido aos britânicos fez esmorecer o suporte do país ao Mandato na Palestina.



1947. Plano de Partilha para a Palestina proposto pela Assembleia Geral da ONU



      Em 1946 o Reino Unido concedeu independência à Jordânia e declarou que terminaria o Mandato para a Palestina em Maio de 1948. Nestas circunstâncias, a “Questão da Palestina” passou para a recém-formada Organização das Nações Unidas, que desenhou um Plano de Partilha, aprovado pela sua Assembleia Geral a 27 de Novembro de 1947, com 33 votos a favor, 13 contra e 10 abstenções. 


      O Plano de Partilha, que visava a criação de dois Estados — um árabe e outro judaico —, atribuía a Jerusalém o estatuto de cidade internacional. Assim, Jerusalém estaria fora do controlo, tanto judeu, como árabe, mas cravada no centro de um enorme segmento do futuro Estado Palestiniano. Aliás, a porção árabe contemplava o grosso da zona histórica, ao passo que a judaica, embora mais extensa, englobava os áridos desertos Negueve e Arava. Apesar das condições, o plano foi aceite pela Agência Judaica para a Palestina. Os líderes e os governos árabes, por outro lado, rejeitaram o plano e manifestaram a sua discordância a qualquer divisão do território.



1947. Combatentes árabes nas muralhas de Jerusalém. Fotógrafo: Khalil Rissass. Arquivos Centrais Sionistas, Jerusalém



      A 14 de Maio de 1948, terminado o Mandato Britânico para a Palestina, foi emitida a Declaração da Independência de Israel. A 15 de Maio os exércitos do Egipto, da Síria, da Transjordânia, do Líbano e do Iraque invadiram Israel.



14 de Maio de 1948. Celebrando o Dia da Independência em Jerusalém 
(guardado a partir do youtube.com)



Maio de 1948. Árabes fugindo de Jenin. Fotógrafo: John Phillips. Life Magazine



      A guerra árabe-israelita de 1948 terminou com a vitória de Israel. Portanto, os israelitas chamam-lhe Guerra da Independência. Os árabes palestinianos chamam-lhe A Catástrofe (Naqba), em virtude do êxodo de cerca de 700 mil árabes que fugiram da Palestina, êxodo que começou ainda em 1947 quando a ONU aprovou o Plano de Partilha.



Voluntários civis carregam um legionário árabe ferido. Maio de 1948, Cidade Velha, Jerusalém. Fotógrafo: John Phillips. Life Magazine



      A guerra de 1948 fez de Jerusalém uma cidade dividida. Antes de 1948 havia vários bairros árabes em Jerusalém Ocidental. Depois veio o bombardeamento da Jerusalém judaica pelos exércitos jordano e egípcio. Quando tudo terminou, milhares de palestinianos tinham abandonado os seus lares. Nesse mesmo ano, na mesma guerra, cerca de um milhão de judeus orientais dos países árabes foram expulsos e muitos deles acabaram em Israel nas mesmas casas que, antes, tinham pertencido aos palestinianos.



População judia tentando sair de uma parte de Jerusalém já ocupada por forças árabes. Junho de 1948. Fotógrafo: John Phillips. Life Magazine



      Enquanto o sector oriental, incluindo a Cidade Velha e os lugares sagrados, foi anexado pela Jordânia, o sector ocidental foi anexado por Israel. Em Junho de 1948 a Legião Árabe expulsou os cerca de 1500 judeus do Bairro Judeu, deixando um rasto de destruição enorme; as sinagogas foram arrasadas, como as icónicas Tiferet Yisrael e Hurva. O rasto de destruição estendeu-se ao histórico Mugrabi, um bairro árabe contíguo ao Bairro Judeu e ao Kotel (Muro das Lamentações).



Um Rabino Sefardita discutindo os termos de rendição do Bairro Judeu na Cidade Velha com soldados da Legião Árabe. Junho de 1948, Jerusalém. Fotógrafo: John Phillips. Life Magazine



 Famílias judias deixando a Cidade Velha pela Porta do Sião. Junho de 1948, Jerusalém. Fotógrafo: John Phillips. Life Magazine



      Os judeus só voltaram a ter acesso aos lugares sagrados em 1967, quando a cidade foi reunificada após a vitória de Israel na Guerra dos Seis Dias.  Na Jerusalém reunificada e sob bandeira israelita desde 1967, o Monte do Templo/Haram al-Sharif continua até hoje a ser administrado por um Conselho Islâmico conhecido por Waqf (como acontece desde a reconquista muçulmana de Jerusalém aos Cruzados, em 1187), nomeado pela Jordânia. Entretanto, os judeus só podem visitar o Monte do Templo sob supervisão jordana, não lhes sendo permitido rezar lá, um acordo que os sucessivos governos israelitas observam. Para os judeus os direitos de culto estão circunscritos ao Kotel/Muro das Lamentações, situado numa plataforma junto ao Monte do Templo.



Yom Kippur no Muro das Lamentações, 1904, Jerusalém. Matson Collection, 
Library of Congress, Washington D.C.



      O Muro Ocidental, HaKotel HaMa’aravi em hebraico, também conhecido por Muro das Lamentações (termo usado essencialmente por cristãos que decorre da prática judaica de, no local, lamentar e chorar a destruição dos Templos), é a única parte que resta do Segundo Templo destruído em 70 EC pelos romanos.


        O Kotel, apesar de ser o local mais sagrado do Judaísmo, ou por esse motivo, foi palco de muitas hostilidades entre árabes e judeus durante o Mandato Britânico. A este propósito convém lembrar um incidente ocorrido em Setembro de 1928, cujo aproveitamento político conduziria a uma situação verdadeiramente dramática.   



Judeus rezando no Kotel, Jerusalém, 1929. Matson Collection, Library of Congress, 
Washington D.C.



      No dia 24 de Setembro de 1928, feriado de Yom Kippur, os judeus colocaram um tabique em frente ao Kotel, destinado a separar os homens das mulheres durante as orações. A atitude em si não podia ser mais insignificante, mas o Grande Mufti Amin al-Husseini usou-a como pretexto para excitar o fanatismo religioso das multidões árabes. De Outubro de 1928 em diante, o Mufti organizou uma série de protestos para demonstrar a exclusividade árabe às pretensões de propriedade do Monte do Templo, consequentemente acusando os judeus de profanarem propriedade árabe e insinuando que o real objectivo era o de se apoderarem do rochedo de onde Maomé ascendera ao Céu.



Um grupo de judeus olhando para o Kotel, Jerusalém, 1929. Matson Collection, 
Library of Congress, Washington D.C.



      Com autorização das autoridades britânicas, o Mufti al-Husseini, não só ordenou novas construções junto ao Kotel, como converteu um edifício que lhe estava adjacente em mesquita, à qual acrescentou um minarete. Um muezzin foi nomeado para fazer a chamada islâmica para a oração e realizar ritos sufis. No Verão de 1929, o Grande Mufti ordenou ainda a abertura de uma passagem que fazia a ligação do Monte do Templo ao Kotel. Tudo isto foi sentido pelos judeus que rezavam no Kotel como uma provocação. Os judeus protestaram e as tensões aumentaram.



Polícia Britânica de guarda ao Kotel, Jerusalém, 1934. (Verlag Wien)



      No dia 14 de Agosto, depois de vários ataques a judeus que rezavam no Kotel, 6000 judeus manifestaram-se em Telavive, gritando “O Kotel é nosso”. No dia seguinte, jejum de Tisha B’av, 300 jovens ergueram a bandeira sionista no Kotel e cantaram o hino “Hatikvah”. No dia 16, uma multidão organizada de 2000 árabes invadiu o Kotel, agredindo os judeus e queimando livros de orações e outros objectos de culto. Nessa semana os tumultos alastraram a outras zonas de Jerusalém, e também a outras cidades. Os árabes atacavam, os judeus retaliavam. Um dos piores ataques de judeus a árabes ocorreu num bairro entre Jafa e Telavive, onde foram assassinados o Imame da mesquita local e outras seis pessoas. Embora sem mortes a lamentar, mas provocando grandes danos, no dia 26 de Agosto, em Jerusalém, um grupo de judeus atacou a mesquita Nebi Akasha e profanou o Túmulo dos Profetas.


      De 23 a 29 de Agosto, grupos de árabes perpetraram os massacres do Hebron e de Safed. Foram assassinados 133 judeus e 339 ficaram feridos; entre os árabes registaram-se 110 mortos e 232 feridos, na sua maioria por polícias britânicos no processo de dominar os tumultos. 



1967. Paraquedistas israelitas no Kotel. Fotógrafo: David Rubinger



    Durante os dezanove anos de ocupação jordana os judeus foram completamente banidos da Cidade Velha e, por conseguinte, impedidos de rezar no Kotel. Este período terminou a 10 de Junho de 1967, quando o exército israelita retomou o controlo do sítio, após a Guerra dos Seis Dias. Quarenta e oito horas depois de retomarem o controlo do Kotel (que estava transformado em lixeira), os militares, sem ordens explícitas do governo israelita, procederam à demolição do Bairro Marroquino (Mugrabi), que se situava a uns meros quatro metros do Kotel. 106 famílias árabes receberam ordens para abandonar as suas casas.



Kotel, 15/1/2006. Fotógrafo: David Harris




      No período pré-1948, o espaço que corria ao longo do Kotel tinha 120 m2. Depois da demolição do Mugrabi, o espaço foi alargado para 2 400 m2.



O Bairro Mugrabi com o Kotel ao fundo, Jerusalém. Matson Collection, 
Library of Congress, Washington D.C.



      O nome Mugrabi deriva de “Magreb”, referindo-se ao Norte de África, ou especificamente a Marrocos. O Bairro Marroquino ou Mugrabi foi fundado em finais do século XII por um filho de Saladino, Malik Al Afdal, que o dedicou a imigrantes oriundos do Norte de África.   

 
       No período pós-1967, muitos residentes do Bairro Marroquino emigraram para Marrocos com a assistência do rei Hassan II. Outros encontraram refúgio noutras zonas de Jerusalém. Em Abril de 1968 o governo israelita expropriou os terrenos do Mugrabi para uso público, indemnizando cada uma das famílias deslocadas com 200 dinares jordanos.  



“Jerusalém”, Zeev Raban (1890-1970)Polícia Britânica de guarda ao Kotel, 
Jerusalém, 1934. (Verlag Wien)



“Jerusalém” do poeta israelita
Yehuda Amichai (1924-2000)

 
Jerusalém


Num terraço da Cidade Velha
há roupa estendida à luz do fim de tarde:
o lençol branco de uma mulher que me odeia,
a toalha de um homem que me odeia,
que ele usa para limpar o suor do rosto.

Nos céus da Cidade Velha
um papagaio de papel.
No outro lado do cordel,
uma criança
que não consigo ver
por causa do muro.

Içamos muitas bandeiras,
eles içam muitas bandeiras.
Para nos fazer acreditar que são felizes.
Para os fazer acreditar que somos felizes.

Yehuda Amichai. Do livro Poemas, 1948-1962.



        A história de Jerusalém desenrola-se ao longo dos séculos com muitos actos de violência. Muitas vezes, talvez demais, cometidos em nome de Deus. A religião é frequentemente acusada de ser a raiz do problema. Acusação injusta que carece de fundamento. Afinal, os regimes comunistas, não esquecendo o nacional-socialismo num passado recente, regem-se por ideais ateus, que estão longe de ser um exemplo de paz e amor. Mas, não sendo a religião o verdadeiro problema, é uma criação humana, e por isso parte do problema. E se é parte do problema, então tem de ser parte da solução. O rabino Jonathan Sacks a este propósito diz uma coisa muito simples, mas muito pertinente: «Se queremos viver a nossa fé em liberdade, então temos de garantir aos outros a liberdade de cultuarem as suas fés. Precisamos de criar espaço teológico para o outro que não é da minha fé, que não pertence ao meu ciclo de salvação».


     Hannah Arendt, na sua obra “A Condição Humana” considera que a condição humana é essencialmente trágica. Mas defende que a capacidade de perdoar pode transformar a tragédia em esperança. A tragédia alimenta-se de azedume, de pessimismo, de vingança, de ódio; sentimentos intimidatórios, paralisantes, corrosivos, que conduzem ao fanatismo. E nós precisamos de esperança, não de fanatismo.


    Yehuda Amichai, no poema «O lugar onde tenho razão» expressa o fanatismo como só um poeta consegue fazê-lo:


«Do lugar onde temos razão não podem crescer flores na Primavera»



      Este ciclo de quatro artigos sobre Jerusalém, que não são mais que uma tímida tentativa para compreender a difícil história de uma cidade única, que combina o mundano e o sagrado, visão e realidade, judeus, árabes, arménios, gregos, etíopes, entre outros, chega ao fim. Mas com esperança. Jerusalém tem muitas cicatrizes, mas tem também cada vez mais gente, de entre as suas comunidades, consciente que está destinada a viver lado a lado. E é nesta união de pessoas e de comunidades, particularmente de árabes e judeus, que reside a esperança de encontrar um caminho para a paz.


      Despedimo-nos com um convite à música: o concerto “Jerusalém: a Cidade das Duas Pazes”, dirigido por Jordi Savall, acompanhado pelo seu Ensemble Hèsperion XXI e pela Capela Real da Catalunha. São convidados músicos israelitas, palestinianos, iraquianos, gregos, arménios e turcos, que transportam para o palco uma odisseia musical das três fés abraâmicas.